quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Lenda da Aldeia das Duas Ruas

Continuação de aqui

O pássaro de olhos de safira, que era como o diria a rainha, acomodou-se no parapeito espreitando as duas, e a aia recuou no quarto, cambaleou de susto, andou às arrecuas.
- Tire-me dali aquele demo de bicho, Princesa! Foi o que gritou a aia num desvario de nem pensar que o mandar fazer não lhe cabia a ela. E a Menina-Princesa riu sem nenhum ruído, apenas um sorriso no rosto que era triste, ainda mais à luz amarelada de um coto de vela. A aia retomou-se de mandados devidos pois que lhos dissera Sua Alteza a Rainha.
- Vista-se, Princesa. Prepare-se para as exéquias de Sua Alteza seu Paizinho.
Gaguejos da aia no terror de tudo: o rei que morrera, o outro que seria morto lá pelo cair da tarde, aquele pássaro ali espreitando. E o terror, que ela se assustava de o sentir, o medo daquele corpo desnudado que era como se a aia visse o que vira Ernesto e a aia morria de vergonha e de susto. E desviava a palmatória do deambular da menina pelo quarto numa dança danada. Era o que pensava a aia. Desviava a luz dela como que a cegar-se disso, a esquecer-se.E foi iluminando a janela de ogiva e o banco onde estava descaída roupa desvestida e onde o pássaro se fazia cada vez mais visto. Voltou a benzer-se com a mão esquerda num exorcizando o demónio que era, ao momento, ainda mais que o resto, aquele pássaro acordado pela noite.O cabelo da menina ainda embaraçado das mãos de Ernesto, e a aia tremendo ao alisá-lo com um pente debruado com pequenas pérolas. E nem percebia porque tremia tanto.A luz do pequeno coto mirrava-se adensando sombras e a cabeça do pássaro cada vez mais dentro, cada vez mais debruçada na fresta, cada vez mais sobre o banco e a aia tremendo e penteando.

Ernesto revirou-se na cama. Num gesto de sono, num gesto de quem nem sabe aonde e nem como, puxa ao rosto a manta que o cobre. Ouve-se um suspiro.Um pássaro branco com olhos de rubi, traz no bico roupagens roubadas por fresta de janela do palácio.Ernesto alargou o espaço sob a manta e cobriu, aconchegando, o corpo branco da amada.Ernesto dorme sonhando abraçado aos desvestidos.
Estava quase terminada a obra desse dia entrado em madrugada. As mãos do carpinteiro alisaram a tábua num gesto de quem afaga coxa de mulher dormindo.Era preciso enterrar Sua Alteza. Vieram avisá-lo. Não sabia se faria outro caixão ainda essa manhã. Ele nem sabia se teria tempo. Talvez houvesse que esperar o morto o finzinho da tarde, talvez aguardar o passar da noite. Ele nem sabia, mas logo lho disseram:- Irás pela manhã erguer o cadafalso.Nem lhe explicaram para quem, nem aquele que o disse entendeu que fosse necessário, nem o carpinteiro perguntou.

O que a rainha ouviu, não era uma voz diferente de uma das pessoas, fosse ela do palácio ou de entre a meia centena que vivia nas duas ruas, a de trás e a da frente. Não seria gente dali porque na aldeia não era dita a palavra repetida assim como endoidando. E mal a rainha a ouviu o que percebeu ser bicho, correu numa grande aflição.- Que não oiça Sua Alteza o Rei, Senhor, Vos peço!Orava Sua Alteza atrapalhando-se nas saias e no receio, porque a rainha sabia o poder da palavra que o bicho que era um pássaro falava repetindo: a rainha aprendera nas terras de seu nascimento.Na sala do trono, o rei recebia emissários de reinos distantes. E mesmo com as falas de outros dizeres e mesmo a rainha tentando, já o Rei ouvira a palavra dita pelo pássaro. Choraram os olhos do rei em a ouvindo e nem deu devido agradecer à oferenda de uma taça de oiro e pedras preciosas.Temia o rei por sua filha: que encontrasse ela alguém que soubesse a palavra. Ele se bateria por sua salvação até à morte. Ele morreria e mandaria matar.
Chorava de diferentes lágrimas a Rainha que ela as chorava de bem quereres que os tivesse a filha. Trouxera a palavra guardada num segredo, vinda de outros reinos antes de ser Rainha ali onde tal palavra não se era ouvida. Por isso, se aprazia em lágrimas e risos pela sua Menina.- Prouvera, desejava em surdina. E desejava muito, apesar do tudo que a rainha sabia que se avizinhava.
Inquiriu o Rei de quem e onde e quando, se ouvira, se soubera, o quê como; e contaram-lhe, disseram vistos, Ernesto recolhendo o gado e a Princesa correndo, os dois lá para os pastos. Não a aia que não entendia. Contaram as mulheres da fonte. Perceberam-se intentos, soube o rei os factos.Correram céleres os pregões. Fez-se o duelo que era assim o uso fosse rei ou plebeu. Duas espadas cruzadas no ar cinzento da tarde. Venceu o carpinteiro, morreria o filho. Era assim o costume.
O cabelo negro da princesa já está penteado. Duas tranças entremeadas de fios de oiro e prata. Está vestida a princesa. Recoberto o nu do corpo que a aia nem tocara ao vesti-lo de corpete, de saiote, de calça, e cobrir tudo com o veludo negro de um vestido.No espelho, na nesga que a lua alumiara há pouco, corre um fio de lágrima, uma saudade do nu que fora feito num a propósito de reviver afagos, carícias, ruídos e gestos inventados.
O pássaro branco desceu sobre o cadáver exposto no adro da igreja. Não poisou sobre ele. Nem poisou sequer. Ficou voando em voos rasando, voos redondos sobre o caixão ainda odorando a serradura e à cola dos entalhes.Vociferou o povo. Um único clamor. Nada que fizesse silenciar o pássaro. Um falar meio rouco, um repetir sentido. O pássaro voando em círculos cada vez mais baixo, repetindo sempre, como uma lenga-lenga, até que fosse coberta de terra a última tábua, até que fosse alisado o monte que seria o resto de quem não conheceu a palavra.A rainha, com uma mão apenas erguida no ar sem sol. Uma mão enluvada de negro desfez o gesto, impediu sequer a intenção de abater o bicho.
Ernesto acordou que o chamavam.Eram quatro da tarde e o povo nem se apartara da rua da frente onde ficava a igreja e o palácio e onde as casas corriam certas encostadas umas nas outras. Mudaram-se as gentes para um pouco ao lado, onde o pai de Ernesto ainda erguia em tábuas pregadas o cadafalso.Profissão carpinteiro, ele pregava cada prego com igual esmero que pela madrugada entalhara a tampa do caixão real. E em ambos os tempos pensava na mãe de Ernesto.Ela chegara numa manhã de Agosto vinda por caminhos de longe. Filha de uns saltimbancos, ainda ele mal sabia que seria carpinteiro e ela a ensinar-lhe, ela a dizer-lhe a palavra. Ela e ele na busca dos sentidos guardados na palavra que ela trouxera de longe. A palavra que fora ainda há pouco gritada pelo pássaro.- Um pássaro estranho, não porque fala, já vi disso muito, mas porque este pássaro me lembra qualquer coisa.Assim cismava o carpinteiro pregando mais um prego.Antes de morrer de umas febres que dizimaram quase metade das casas do povo e mais gentes do paço, a mãe de Ernesto bordara um lenço.
O carpinteiro encimado nas tábuas, erguendo o cadafalso e pensando em como lhe custara tomar a decisão: mostrar ou esconder o lenço.Passou o braço pelo suor do rosto, ou fosse que o fizesse para secar uma lágrima, e balbuciou as palavras que ela bordara no lenço e recordou o que ela lhe dissera e o que ele lhe jurara.Pregou o último prego. Sabia que tomara a decisão acertada. Endireitou o corpo num ligeiro descanso. No céu apareceram sobre o tecto de chumbo, uns fiapos de nuvens soltas, muito brancas.
Assim lhe dissera a mãe de Ernesto:- Quando vires que o nosso filho vai puxando jeito de querer fêmea, não deixes que se amanhe assim de qualquer modo e nunca antes que lhe dês este lenço. Ele que o cheire, que o afague, que o passe pelo corpo, que o leia, que tu hás-de ensinar-lhe a palavra escrita, o que nela há de descobertas.
O carpinteiro acabou o último pedaço. Terminou de firmar a trave onde penderia a corda. Afiançou-se da robustez da estrutura socando-a com a mão que ele tinha enorme como grande era o seu coração.
Nesse preciso momento, virava Ernesto a esquina de lá onde o fora buscar a guarda real. Lá onde dormira o último sono com os desvestidos roubados, que ele nem sabia isso: cuidou que os tivesse ela deixado de dormidos. Foi o que fez que os guardas o encontrassem sorrindo.Vinha Ernesto da casa, aonde o pai, uns dias antes, num enorme sem jeito, lhe dera o lenço bordado e ficara contando.
Da ala esquerda do palácio não se vê o cadafalso, nem a corda rodando, nem os olhos de Ernesto olhando o pássaro que voa para o alto no céu que se deu em azul.Sua Alteza a princesa não assoma na janela do quarto. Se o fizesse, veria o pássaro voando no céu que se abriu em sol: um milagre de luz naquela serra de chuva e neve cada dia de cada longo Inverno.O pássaro voa despertando a palavra em lugares distantes. A palavra que está escrita no lenço que a Menina-Princesa guarda enrolado em papel de seda. O lenço que tem bordado em toda a volta e no centro muitas palavras em cores variadas: verde, vermelho, azul, amarelo, lilás e cor-de-rosa. Tudo em linhas de seda. Tudo em diversas linguagens. Uma só palavra repetida e em cores como amplo e colorido é o que ela significa.Amor e mais Amor e Ainda, Amor, era o que estava bordado no lenço branco de uma fina cambraia.
O pássaro revoou no céu. Arrependeu-se ou ter-se-á esquecido. É decerto o que pensa quem o está olhando.Enquanto retorna, as asas vão crescendo. Um desmesurado de tamanho. Parecem um lenço, tal o que estava escrito, guardado numa gaveta do quarto da Menina - Princesa. Seria mais um enorme lençol, ou melhor comparado, uma nuvem grande que ainda nem pensasse ser chuva.Cobriram-se com essas asas as duas ruas, a de trás e a da frente e também o palácio e ouviu-se a voz do pássaro dizendo o que a mãe de Ernesto escreveu no lenço, numa voz doce, muito suave.Foi coisa de momentos. Não mais que ficar cada um no seu deslumbramento, não mais que deixar que cada um reconhecesse a palavra. Todos eles: o povo, o rei, mesmo que morto, a rainha e a aia chorosa que pedirá perdão de não ter entendido a sua menina.E só depois o pássaro voou para todo o sempre.Voltou subindo com asas apropriadas a um corpo de pássaro que é mais pombo do que águia e que na cor nem faz lembrar o corvo por ser branca cada uma das penas com excepção de uma malha negra, muito estreita: duas linhas de penas cruzando-se muito escuras uma sobre a outra.
- Uma cruz negra no pescoço!Grito do carpinteiro sentado na cama, um dia depois de ter Ernesto subido ao cadafalso. Um acordar vagamente parecido ao acordar de um pesadelo.- O pássaro que partiu com os saltimbancos, ficara a mãe de Ernesto chorando.Assim se confirmou o carpinteiro.
O mesmo pássaro que pedira, mas isso o carpinteiro não sabe, “Ernesto, toca na tua harmónica uma canção de Amor” no momento preciso em que passava correndo a Menina-Princesa. Andava Ernesto recolhendo os bois…
(
Dizem que ainda hoje, passados muitos, muitos anos, tantos que nem sabemos quando se deu esta história, nas noites em que o céu se faz em dois, e a lua está muita pasmada, amarela e redonda, se podem ver, duas meninas, uma princesa e sua aia, dançando nuazinhas pelo quarto. O Amor tudo pode! É isto o que diz a lenda da Aldeia das Duas Ruas.)

1 comentário:

wind disse...

Escritora, extraordinário conto! Parabéns!
Beijos