domingo, 24 de fevereiro de 2008

página trinta e oito - quinto

Maria Ema nua. A cabeça tombada sobre os limos verdes.
O corpo caído de bruços, os pés ainda mal saídos da salinha.
Os cabelos ruivos parecendo as chamas da febre em que lhe arde o corpo.
Poisado ao lado, o branco, muito branco, da túnica. Despida dela, tal como o colar de pérolas que o tinha no decote, aquela tarde. Rebentado em bolinhas que rolam aos passos dos que entram na varanda. Descobrem-na.
- nua e ferida
- queimada a cara
- ardendo em febre
Menina, Maria Ema, Vizinha, Senhora Dona, Minha querida.
É conforme quem fala. Vozes que a olham.
Vozes que dizem como se escrevessem letras no ar da tarde, como se apontassem num caderno de notas. Memorando.
As vozes que vieram correndo, zanzando pela casa até á varanda.
Mãezinha! a voz da filha mais nova.
Vozes baixas. Espantadas.
Vozes jovens demais para saberem.
Diria ela se pudesse. Ardendo em febre numa tarde de um Abril ainda em meio.
Ferida no rosto. Dois dias estendida na varanda.
É o que dizem, recontam.
E ela insistirá que foi o quente que a levou para um aonde.
[ou um furacão]
[ou um fogo]
[ou porque não gente]
E dirão todos, nos seus contos, fosse ele o que fosse.
Nem durou o tempo de um passo.
Nem se sabe se tremeu ou só se deu em escuro e laranja a luz do mundo.
[Roxo. Que lampejou um violeta intenso.]
Duvidavam-se os que assim narravam. E seguiam no conto.
Nem se sabe se vaguearam anjos ou demónios.
Se voaram pelos ares, cruzando telhados.
Não se sabe se eram faúlhas e, se o eram, nem se sabe de onde.
E perguntavam-se as gentes, umas a outras, se assim era. Como fora.
Ninguém afirmava, senão que eram vermelhas e cruzavam um céu que ficou de um branco brilhando depois de se ter feito em negro.
Tudo num repente.
Tudo no instante do demorar de um pequeno passo. O tempo de ir atrás ou adiante ou para qualquer outro lado. Um único e curto desandado.
Um tempo diminuto.
Nem de pensar se deu aquele instante. Nem de reter o acontecendo.
Há quem afirme que ouviu cânticos. Quem diga que eram vozes de anjos.
Não sabem explicar. Nem como identificam. Mas ouviram. E eram vozes de anjos. Afirmam.
[Sabem pelo instinto que é o de ser anjo no humano. Digo.]
O que ninguém afirma é ter partido.
Nenhum sinal de ir. De ser levado.
O que ninguém mostra é um qualquer sinal de fogo. Um sinal vincado.
Ninguém ferido em pleno corpo, seja um cotovelo ou um quarto.
Ou ferido no rosto.
Só dela é que o ouvem dito. Ela encontrada estendida na varanda, dois dias esquecidos dos acontecidos.
Um vinco de fogo no rosto assim como se fossem pérolas. Uma, duas, três, marcadas em fiada de colar ou terço. No lado esquerdo do seu rosto pintalgado de sardas.
Uma dezena de um terço de rezar dizendo: Ave Maria Cheia de Graça.
Ela só. Maria Ema , ardida pela face em chagas que seriam cicatriz rosada.
Mais nenhum outro que ela.
Nua na varanda.
E se espantaram os que a viram mais os que escutaram contados que correram num de boca em boca usado neste como em outros casos. Ditos. Contos.
Que tinha uma túnica de linho branco ao lado. Imaculada. Limpa. E ela sangrando.
Que tinha a cara marcada no que daria em cicatriz. Mais tarde.
Contavam quase todos.
Que ardia em febre, sozinha num esconso recanto entre uma salinha e um quarto. Ao relento.
Disseram tanto, antes que ela se dissesse.
E quando ela disse, não a acreditaram.
Calou-se Maria Ema. Desistiu-se.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Página trinta e oito - quarto

Tanto tempo desde que deixou o livro aberto, ao que parece na página trinta e oito, e saiu, quase correndo, a ver o que seria a causa de acabar assim o dia num repente.
E nem foi um segundo, que nem a volta inteira se deu o ponteirinho do relógio que sempre traz no pulso. Todo em ouro e com ponteiros luzentes pelo escuro. Prenda de casamento do Francisco.
[O tio Francisco.
Digo. Emendo.]
Um branco azulado de luz, um tom de tal e qual o que cobria, em aro, a cabeça da Nossa Senhora na capela onde rezava, aos fins de cada tarde, a sua avó Cacilda. Ela, menina, sentada no banco, baloiçando as pernas de dois anos e mais um pouco, nuns Verões mais do que em outros, como é o certo nisso de se ir crescendo. A avó ajoelhada em frente da senhora, muito grande e muito empertigada, num manto pintalgado de estrelas. A senhora que a avó olhava com o queixo erguido e os olhos semicerrados, passando as contas do rosário entre os dedos e mexendo os lábios. A mesma luz que ora brilha no céu que ela olha na varanda entre duas portas com vidros.
Não seria o seu, um olhar de espanto quando aconteceu uma bola de fogo
[ou seria um anjo]
[ou seria demónio]
Pisado o musgo. Iluminado. Mais certo que era musgo e era verde.
Ou seria o seu, um olhar esperando.
E o céu de negro se abria em branco e em luz de fogo.
[ou seria gente]
[ou seria demónio]
[ou seria anjo]
Não o sabe.
Não está certa, ela, sozinha na varanda.
[não de que seja anjo ou fogo,
ou se era o seu um sentir de espanto
ou se lhe era um olhar esperando]
Certa está de que vai voando num abraço quente.
E nem sabe se foi um fogo que a levou a longe.
Certa, de que vai.
[Não de se seria gente ou seria anjo, ou seria demónio.]
Que se partiu ela de ali, ela o saberá, caída na varanda. No chão de limos. Despojada da túnica branca bordada de flores em cada manga.
O chão gelado. Ela o sentirá.
-Estiveste dois dias ali estendida.
Hão de afirmar.
-Ardida de uma febre.
Ouvirá contados.
- Caída na varanda. Ferida de estilhaços.
Dirão os que a viram. E outros. Os que só ouviram recontados.
Há-de sorrir-lhes. Ou dizer zangada à Isabel, sua prima.
-Tu não me desmintas, Maria.
E como ela sabe que a ofende daquele modo de tratamento. Um chamar de criada, na época em que se davam estes aconteceres.
Maria Ema gritará, de olhos muito abertos.
-Eu fui. Não fiquei dois dias estendida na varanda.
Calará desistida que não a acreditam.
A face nem se desfeará na cicatriz.
Um desenho na pele dela, sem mácula, que não o é tal o polvilhado rosado das sardas.
Uma cicatriz como se fora a dezena de um terço.
Inteiras, dez contas pequeninas desde o canto do olho esquerdo até ao queixo. Em arco.
Pode parecer, a quem olhe e não seja devoto, que lhe deflagrou uma bomba em pedaços. Talvez pedrinhas que lhe atirassem.
Dela dirão que lhe rebentou o céu num final de tarde.
Assomou, e o estrondo apanhou-a em cheio sobre o rosto.
É o que explicam.
Não sabem.
Sabe-o ela que não foi no instante após ter deixado aberto, na página que pensa seja trinta e oito, o Ulisses de Joyce. O livro que lia, sentada na salinha virada a uma varanda. Aquela varandinha escondida, aninhada no que era, da casa, uma pequena dobra. Foi depois. Foi num tempo outro que se fizeram nela aqueles redondos.
Ela explicaria cada cicatriz que lhe corta a face, cada conta que lhe enfeita o rosto pelo meio das sardas, num pedaço de rosário de Nossa Senhora. Dez contas de um terço.
Explicava, se acreditassem. Diria quando e como lhe ficaram as marcas em jeito de contas de um terço.
Maria Ema não contará.
Um segredo, outro, que ela guarda.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Página trinta e oito - terceiro

Olha aquele céu estranho. Escuro. O céu enegrecido roubou-lhe a luz com que ainda lia. Num repente. Um quase nada mais que um instante.
Um escuro que a fizera deslizar de dentro. Sair para a varanda. Deixar aberto o livro numa página, descaído na cadeira, sabe lá ela se fechado e nem sabia qual a página. Trinta e oito? Indaga-se olhando da varanda.
Está tão sozinha. Sente frio. Não sabe se é de medo.
Ninguém assoma. Ninguém para ver o que lhe parece um vapor deslizando, denso, num negro de céu, em todo o derredor que ela olha. Um vapor laranja.
Ninguém da casa que fica um pouco para lá do muro do jardim, ainda debaixo da copa da araucária.
Inebria-se. Não percebe. Um céu dantesco que ela olha. Não é receio que sente. É mais uma incerteza, quase tomando a forma de desejo.
Acaricia de cada mão contrária um cotovelo, assim a modos de se fazer um enlaço e dizer: arrefeceu. Desagasalha-a a túnica de linho com bordados nas mangas. Escorregou-lhe, decerto, no chão da sala, o casaquinho de algodão que tinha sobre as costas. Caíra-lhe na pressa de vir cá fora, de entender o que enegrecera a luz de fim de dia. Lhe toldara as letras com que lia.
Caminha um passo, em arrecuas. Um passo lento, assim parecendo que nem achava se devia sair de ali ou se ficar.
Ensurdece do estrondo.
O grito.
O embate.
O ar que se faz quente.
Encandeia-se da luz. O céu embranqueceu e fez mais verde o que era limo de chão não batido de sol. O canto da varanda. Uma prega na casa.
Quieta ela.
Hirta como no jogo, ela pequena, em casa dos avós.
Vamos jogar à estátua. Assim dizia o primo.
Nem nos rimos, nem nos mexemos. Ordenava-lhe ele.
Nem podes mexer as pestanas, senão perdes. Gritava-lhe o Silvestre. Morreu cedo. Num Verão, não veio. Tinha, como ela, treze anos feitos por Janeiro. Angina de peito. Foi a mãe quem disse.
Ela sempre perdia. Mexia-se demais, no jogo. Ele muito quieto. Muito morto.
Seria vencedora aquela noite, as mãos abraçando as mangas bordadas da veste, os olhos tão abertos, nem pestanejavam, quedos naquele não perceberem. Mais do que receio. E não era medo. Parecia um querer muito forte que ela não entende. E nem tem o tempo. Estátua, ela, no recanto onde cresceu o musgo. Uma dobra da casa.
Desiluminara-se, ainda há um nada, o ar da sala.
E nem era o momento de o sol se esconder e tanto se alaranjara o firmamento.
Não sabe como sentir. Nem se ficar ou se fugir. Nem sabe ela de que fugiria.
Um momento grande o que lhe acontece.