quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Lenda da Aldeia das Duas Ruas

Continuação de aqui

O pássaro de olhos de safira, que era como o diria a rainha, acomodou-se no parapeito espreitando as duas, e a aia recuou no quarto, cambaleou de susto, andou às arrecuas.
- Tire-me dali aquele demo de bicho, Princesa! Foi o que gritou a aia num desvario de nem pensar que o mandar fazer não lhe cabia a ela. E a Menina-Princesa riu sem nenhum ruído, apenas um sorriso no rosto que era triste, ainda mais à luz amarelada de um coto de vela. A aia retomou-se de mandados devidos pois que lhos dissera Sua Alteza a Rainha.
- Vista-se, Princesa. Prepare-se para as exéquias de Sua Alteza seu Paizinho.
Gaguejos da aia no terror de tudo: o rei que morrera, o outro que seria morto lá pelo cair da tarde, aquele pássaro ali espreitando. E o terror, que ela se assustava de o sentir, o medo daquele corpo desnudado que era como se a aia visse o que vira Ernesto e a aia morria de vergonha e de susto. E desviava a palmatória do deambular da menina pelo quarto numa dança danada. Era o que pensava a aia. Desviava a luz dela como que a cegar-se disso, a esquecer-se.E foi iluminando a janela de ogiva e o banco onde estava descaída roupa desvestida e onde o pássaro se fazia cada vez mais visto. Voltou a benzer-se com a mão esquerda num exorcizando o demónio que era, ao momento, ainda mais que o resto, aquele pássaro acordado pela noite.O cabelo da menina ainda embaraçado das mãos de Ernesto, e a aia tremendo ao alisá-lo com um pente debruado com pequenas pérolas. E nem percebia porque tremia tanto.A luz do pequeno coto mirrava-se adensando sombras e a cabeça do pássaro cada vez mais dentro, cada vez mais debruçada na fresta, cada vez mais sobre o banco e a aia tremendo e penteando.

Ernesto revirou-se na cama. Num gesto de sono, num gesto de quem nem sabe aonde e nem como, puxa ao rosto a manta que o cobre. Ouve-se um suspiro.Um pássaro branco com olhos de rubi, traz no bico roupagens roubadas por fresta de janela do palácio.Ernesto alargou o espaço sob a manta e cobriu, aconchegando, o corpo branco da amada.Ernesto dorme sonhando abraçado aos desvestidos.
Estava quase terminada a obra desse dia entrado em madrugada. As mãos do carpinteiro alisaram a tábua num gesto de quem afaga coxa de mulher dormindo.Era preciso enterrar Sua Alteza. Vieram avisá-lo. Não sabia se faria outro caixão ainda essa manhã. Ele nem sabia se teria tempo. Talvez houvesse que esperar o morto o finzinho da tarde, talvez aguardar o passar da noite. Ele nem sabia, mas logo lho disseram:- Irás pela manhã erguer o cadafalso.Nem lhe explicaram para quem, nem aquele que o disse entendeu que fosse necessário, nem o carpinteiro perguntou.

O que a rainha ouviu, não era uma voz diferente de uma das pessoas, fosse ela do palácio ou de entre a meia centena que vivia nas duas ruas, a de trás e a da frente. Não seria gente dali porque na aldeia não era dita a palavra repetida assim como endoidando. E mal a rainha a ouviu o que percebeu ser bicho, correu numa grande aflição.- Que não oiça Sua Alteza o Rei, Senhor, Vos peço!Orava Sua Alteza atrapalhando-se nas saias e no receio, porque a rainha sabia o poder da palavra que o bicho que era um pássaro falava repetindo: a rainha aprendera nas terras de seu nascimento.Na sala do trono, o rei recebia emissários de reinos distantes. E mesmo com as falas de outros dizeres e mesmo a rainha tentando, já o Rei ouvira a palavra dita pelo pássaro. Choraram os olhos do rei em a ouvindo e nem deu devido agradecer à oferenda de uma taça de oiro e pedras preciosas.Temia o rei por sua filha: que encontrasse ela alguém que soubesse a palavra. Ele se bateria por sua salvação até à morte. Ele morreria e mandaria matar.
Chorava de diferentes lágrimas a Rainha que ela as chorava de bem quereres que os tivesse a filha. Trouxera a palavra guardada num segredo, vinda de outros reinos antes de ser Rainha ali onde tal palavra não se era ouvida. Por isso, se aprazia em lágrimas e risos pela sua Menina.- Prouvera, desejava em surdina. E desejava muito, apesar do tudo que a rainha sabia que se avizinhava.
Inquiriu o Rei de quem e onde e quando, se ouvira, se soubera, o quê como; e contaram-lhe, disseram vistos, Ernesto recolhendo o gado e a Princesa correndo, os dois lá para os pastos. Não a aia que não entendia. Contaram as mulheres da fonte. Perceberam-se intentos, soube o rei os factos.Correram céleres os pregões. Fez-se o duelo que era assim o uso fosse rei ou plebeu. Duas espadas cruzadas no ar cinzento da tarde. Venceu o carpinteiro, morreria o filho. Era assim o costume.
O cabelo negro da princesa já está penteado. Duas tranças entremeadas de fios de oiro e prata. Está vestida a princesa. Recoberto o nu do corpo que a aia nem tocara ao vesti-lo de corpete, de saiote, de calça, e cobrir tudo com o veludo negro de um vestido.No espelho, na nesga que a lua alumiara há pouco, corre um fio de lágrima, uma saudade do nu que fora feito num a propósito de reviver afagos, carícias, ruídos e gestos inventados.
O pássaro branco desceu sobre o cadáver exposto no adro da igreja. Não poisou sobre ele. Nem poisou sequer. Ficou voando em voos rasando, voos redondos sobre o caixão ainda odorando a serradura e à cola dos entalhes.Vociferou o povo. Um único clamor. Nada que fizesse silenciar o pássaro. Um falar meio rouco, um repetir sentido. O pássaro voando em círculos cada vez mais baixo, repetindo sempre, como uma lenga-lenga, até que fosse coberta de terra a última tábua, até que fosse alisado o monte que seria o resto de quem não conheceu a palavra.A rainha, com uma mão apenas erguida no ar sem sol. Uma mão enluvada de negro desfez o gesto, impediu sequer a intenção de abater o bicho.
Ernesto acordou que o chamavam.Eram quatro da tarde e o povo nem se apartara da rua da frente onde ficava a igreja e o palácio e onde as casas corriam certas encostadas umas nas outras. Mudaram-se as gentes para um pouco ao lado, onde o pai de Ernesto ainda erguia em tábuas pregadas o cadafalso.Profissão carpinteiro, ele pregava cada prego com igual esmero que pela madrugada entalhara a tampa do caixão real. E em ambos os tempos pensava na mãe de Ernesto.Ela chegara numa manhã de Agosto vinda por caminhos de longe. Filha de uns saltimbancos, ainda ele mal sabia que seria carpinteiro e ela a ensinar-lhe, ela a dizer-lhe a palavra. Ela e ele na busca dos sentidos guardados na palavra que ela trouxera de longe. A palavra que fora ainda há pouco gritada pelo pássaro.- Um pássaro estranho, não porque fala, já vi disso muito, mas porque este pássaro me lembra qualquer coisa.Assim cismava o carpinteiro pregando mais um prego.Antes de morrer de umas febres que dizimaram quase metade das casas do povo e mais gentes do paço, a mãe de Ernesto bordara um lenço.
O carpinteiro encimado nas tábuas, erguendo o cadafalso e pensando em como lhe custara tomar a decisão: mostrar ou esconder o lenço.Passou o braço pelo suor do rosto, ou fosse que o fizesse para secar uma lágrima, e balbuciou as palavras que ela bordara no lenço e recordou o que ela lhe dissera e o que ele lhe jurara.Pregou o último prego. Sabia que tomara a decisão acertada. Endireitou o corpo num ligeiro descanso. No céu apareceram sobre o tecto de chumbo, uns fiapos de nuvens soltas, muito brancas.
Assim lhe dissera a mãe de Ernesto:- Quando vires que o nosso filho vai puxando jeito de querer fêmea, não deixes que se amanhe assim de qualquer modo e nunca antes que lhe dês este lenço. Ele que o cheire, que o afague, que o passe pelo corpo, que o leia, que tu hás-de ensinar-lhe a palavra escrita, o que nela há de descobertas.
O carpinteiro acabou o último pedaço. Terminou de firmar a trave onde penderia a corda. Afiançou-se da robustez da estrutura socando-a com a mão que ele tinha enorme como grande era o seu coração.
Nesse preciso momento, virava Ernesto a esquina de lá onde o fora buscar a guarda real. Lá onde dormira o último sono com os desvestidos roubados, que ele nem sabia isso: cuidou que os tivesse ela deixado de dormidos. Foi o que fez que os guardas o encontrassem sorrindo.Vinha Ernesto da casa, aonde o pai, uns dias antes, num enorme sem jeito, lhe dera o lenço bordado e ficara contando.
Da ala esquerda do palácio não se vê o cadafalso, nem a corda rodando, nem os olhos de Ernesto olhando o pássaro que voa para o alto no céu que se deu em azul.Sua Alteza a princesa não assoma na janela do quarto. Se o fizesse, veria o pássaro voando no céu que se abriu em sol: um milagre de luz naquela serra de chuva e neve cada dia de cada longo Inverno.O pássaro voa despertando a palavra em lugares distantes. A palavra que está escrita no lenço que a Menina-Princesa guarda enrolado em papel de seda. O lenço que tem bordado em toda a volta e no centro muitas palavras em cores variadas: verde, vermelho, azul, amarelo, lilás e cor-de-rosa. Tudo em linhas de seda. Tudo em diversas linguagens. Uma só palavra repetida e em cores como amplo e colorido é o que ela significa.Amor e mais Amor e Ainda, Amor, era o que estava bordado no lenço branco de uma fina cambraia.
O pássaro revoou no céu. Arrependeu-se ou ter-se-á esquecido. É decerto o que pensa quem o está olhando.Enquanto retorna, as asas vão crescendo. Um desmesurado de tamanho. Parecem um lenço, tal o que estava escrito, guardado numa gaveta do quarto da Menina - Princesa. Seria mais um enorme lençol, ou melhor comparado, uma nuvem grande que ainda nem pensasse ser chuva.Cobriram-se com essas asas as duas ruas, a de trás e a da frente e também o palácio e ouviu-se a voz do pássaro dizendo o que a mãe de Ernesto escreveu no lenço, numa voz doce, muito suave.Foi coisa de momentos. Não mais que ficar cada um no seu deslumbramento, não mais que deixar que cada um reconhecesse a palavra. Todos eles: o povo, o rei, mesmo que morto, a rainha e a aia chorosa que pedirá perdão de não ter entendido a sua menina.E só depois o pássaro voou para todo o sempre.Voltou subindo com asas apropriadas a um corpo de pássaro que é mais pombo do que águia e que na cor nem faz lembrar o corvo por ser branca cada uma das penas com excepção de uma malha negra, muito estreita: duas linhas de penas cruzando-se muito escuras uma sobre a outra.
- Uma cruz negra no pescoço!Grito do carpinteiro sentado na cama, um dia depois de ter Ernesto subido ao cadafalso. Um acordar vagamente parecido ao acordar de um pesadelo.- O pássaro que partiu com os saltimbancos, ficara a mãe de Ernesto chorando.Assim se confirmou o carpinteiro.
O mesmo pássaro que pedira, mas isso o carpinteiro não sabe, “Ernesto, toca na tua harmónica uma canção de Amor” no momento preciso em que passava correndo a Menina-Princesa. Andava Ernesto recolhendo os bois…
(
Dizem que ainda hoje, passados muitos, muitos anos, tantos que nem sabemos quando se deu esta história, nas noites em que o céu se faz em dois, e a lua está muita pasmada, amarela e redonda, se podem ver, duas meninas, uma princesa e sua aia, dançando nuazinhas pelo quarto. O Amor tudo pode! É isto o que diz a lenda da Aldeia das Duas Ruas.)

domingo, 14 de setembro de 2008

António carpinteiro

Carpinteirava como se a plaina, deslizando na madeira ainda quase verde, fosse mão em corpo de mulher. Ficou-lhe a plaina zanzando doida, sem tino ele no alisar a madeira de pinho sobre o banco, e aquele raio de sol entrando esguio pela clarabóia da oficina, e ele sentindo o quente que era a perna dela, mais coxa do que perna, apertando o seu corpo magro de carpinteiro.
Era sempre assim ao outro dia de uma noite com Maria Elisa: a plaina deslizando sem que a orientasse o mandar de António. Distraído, ele que tinha por costume chegar na bicicleta bamba que pintara de vermelho. Haviam de ter combinado uns dias antes, ou à boca do momento de ficarem juntos: um bilhete enviado por mão de garoto a troco de um punhado de bolotas, umas pevides ou uns grãos salteados em areia quente. Um bilhete designando o dia, como por exemplo: “quarta-feira”; lacónico, sem preâmbulos nem finais apaixonados, escrito com a caneta de tinta permanente oferta da mãe pelo exame do sétimo: alínea H.
Maria Elisa não escreve dia de mês, nem hora: era naquela “quarta feira”, sabia ele e sabia ela e por isso bastava escrever assim cada bilhete. À hora combinada, que era sempre depois de estar dormindo o povoado, ela ouvia (e estava certa que só ela ouvia) o guinchar cada vez mais guinchando: era a bicicleta dele, era António que pedalava. “O meu homem”, como Maria Elisa o chamava, nua sobre a cama, doirada dos mares onde passara o mês das férias.
António a percebera doida do seu corpo num dia em que consertava uma tábua solta no soalho do seu quarto: este, onde se encontram, furtivos, sobre o tapete de Arraiolos que Dona Apreciação bordou em noites de invernia. Maria Elisa suada, corada, as tranças castanhas quase desfeitas sobre o corpo nu. Ela e António carpinteiro, a quem sobrou, na pressa de ter-se inteiro nela, uma peúga preta com os elásticos lassos, calçada no pé esquerdo. Nuzinho, deitado de barriga, António tem nádegas rijas: um rabo chocolate que é a cor do carpinteiro e nem férias de mar ele teve. Todo ele pele e osso excepto aquele pedaço do seu corpo.
Em rodando a noite, ou que seja no início, ou ela o repete, Maria Elisa segura-lhe o pénis, lambe, morde, goza de vê-lo dobrado do tamanho que trazia pedalando: e triplicado, ri-se ela assim pensando, de quando ele aplaina madeira de pinho ainda verde, dobrado o corpo magro no banco da oficina.
António que chegara a mando do bilhete, entrado pela varanda que dá para o jardim do quarto onde Maria Elisa o aguarda, virgem que é como sua mãe a sabe: Dona Apreciação que a tem noivada com o filho do Senhor Garcias desembargador e dono de vinhas e montados. Casamento com data marcada para sete de Outubro.
Num ritmo arfante enrolam-se os corpos deles no cone de luar que entra pela janela na noite aparvalhada de húmido e de quente, de um mês de Agosto terminando. Maria Elisa e António não fazem amor, se nem mais que simpatia eles têm um pelo outro… Eles, na acepção crua da palavra, fodem pela noite dentro.
Na casa silenciosa, o que eles fazem é uma luta para encontrar o desejo de cada um no outro: a sua carne desvendada poro a poro, descoberta em cada interstício, cada dobra de pele, tal qual Maria Elisa fazia quando era pequena, pelo sótão, pela cave, pelas cavalariças e armazéns de trigo da fazenda, propriedade que Dona Apreciação dirige com mão de ferro desde que morreu seu marido - Dom Armindo Valpaços, Visconde.
Maria Elisa descobre, como então, os cheiros e os sabores.
Enquanto isso, o relógio da torre dá badaladas de um quarto. O verde luminoso no mostrador do relógio sobre a cómoda, marca cinco menos um quarto. Maria Elisa quase a ter um outro orgasmo. “ O último”, pensa ela e não decide: Maria Elisa teme, que seja essa uma noite com ponto final.
Concentra esforços. Alça-se sobre o carpinteiro. Desfaz o que sobra de tranças. Cresce o ritmo do seu corpo sobre o corpo de António e o cabelo esvoaça sobre a cara dele como se fora véu, como se fora teia; e num erguer-se, penetrando o sexo dela, o sexo dele, toca-lhe o cabelo no traseiro: o rabo dela rechonchudo, grande; o rabo que António desfaz daquele tão casto que parece nas saias de pregas quando Maria Elisa ajoelha na Igreja, Dona Apreciação ao lado da filha, orando ambas. Maria Elisa que semelha virgem.
O rabo de Maria Elisa, o seu corpo guardado para o esposo é o que ela ouve quando o padre Frederico aconselha castidade nas sessões de preparação para o casamento. O seu rabo endoidado, apertado, instado pelas mãos longas do carpinteiro; tomado pelo sexo dele, mordido dos seus dentes, ratado das unhas longas que ela roça, crava pelos corpos de um e do outro no desespero do desejo.
Batem seis longas badaladas. Nenhum deles ouviu bater as cinco, e nem os quartos tal foi o que não tem como se conte em palavra, seja ela escrita, seja ela falada, e nem que fosse imagem explicaria cada um deles no seu corpo e no corpo do outro. Cada um deles a tropeçar na madrugada, a lutar contra o sol que há-de levantar-se e encher a casa e fazer deles simplesmente Maria Elisa, filha devotada de Dona Apreciação, viúva de Visconde, prometida do filho do Senhor Garcias; e António, mulato, carpinteiro de móveis e arranjador de portas e tábuas de soalho.
A bicicleta parece que não faz ruído quando António parte, já quase a luz da alva despontando: e no entanto ele vai pedalando…

- Aceita por marido… – início da pergunta que o padre faz no sacramento.
Faz-se silêncio na nave da Igreja onde o filho do Senhor Garcias vai a casar com Maria Elisa.
Demora na resposta a noiva de branco: vestido com decote mais ousado do que desejou a mãe. Decote que deixa ver o cruzado das maminhas: virgens, como juraria, se fosse preciso, Dona Apreciação ciosa de sua filha resguardada para aquele casamento ou outro de igual interesse que ela tivesse desejado: ela, a mãe ansiosa da resposta que tarda menos de um segundo, mas faz pairar na Igreja um silêncio de dúvida sem que cada um por si lhe encontre fundamento, mas que causa uma impressão como se houvesse algo.

Apenas António não receia. Num ar de quem espreita à porta da sacristia onde conserta uma gaveta perra, ele sabe que Maria Elisa dirá o desejado sim, e olha-a demorado. Obriga-a a que ela o note.
Que enquanto poisa os olhos no pano do altar e balbucia o sim, ela sinta as suas mãos entrando-lhe pelo decote, soltando-lhe as fitas do véu que jogará sobre o quase marido: engenheiro, comerciante ou doutor de leis, ele será apenas um marido rico.
Que ela diga sim enquanto António lhe desabotoa cada botão do vestido de noiva, lhe rasga o saiote e lhe atravessa o corpo inteiro numa entrega de puro desejo; uma foda louca, rodopiando ambos entre os convidados, rolando unidos sobre o tapete vermelho da nave principal.

António retira-se. Vai completar o serviço que faz na sacristia.

Maria Elisa olha fixamente o altar em sua frente. Fixa a renda com anjos e cachinhos de uva.
O padre hesita e quase que repete:
- Aceita…
Mas detém-se: a boca num esgar como se o padre visse Maria Elisa e o carpinteiro despedindo-se, como se ele soubesse que António estava ali ofertando ela para o filho do Senhor Garcias, para que ele se faça seu marido.

A nave da Igreja respira de alívio: Maria Elisa disse.
Ela fala bem alto para que António oiça:
- Sim, aceito.

Maria Elisa ouve, guinchando, e só ela ouve, a bicicleta vermelha do carpinteiro que se afasta.


domingo, 24 de fevereiro de 2008

página trinta e oito - quinto

Maria Ema nua. A cabeça tombada sobre os limos verdes.
O corpo caído de bruços, os pés ainda mal saídos da salinha.
Os cabelos ruivos parecendo as chamas da febre em que lhe arde o corpo.
Poisado ao lado, o branco, muito branco, da túnica. Despida dela, tal como o colar de pérolas que o tinha no decote, aquela tarde. Rebentado em bolinhas que rolam aos passos dos que entram na varanda. Descobrem-na.
- nua e ferida
- queimada a cara
- ardendo em febre
Menina, Maria Ema, Vizinha, Senhora Dona, Minha querida.
É conforme quem fala. Vozes que a olham.
Vozes que dizem como se escrevessem letras no ar da tarde, como se apontassem num caderno de notas. Memorando.
As vozes que vieram correndo, zanzando pela casa até á varanda.
Mãezinha! a voz da filha mais nova.
Vozes baixas. Espantadas.
Vozes jovens demais para saberem.
Diria ela se pudesse. Ardendo em febre numa tarde de um Abril ainda em meio.
Ferida no rosto. Dois dias estendida na varanda.
É o que dizem, recontam.
E ela insistirá que foi o quente que a levou para um aonde.
[ou um furacão]
[ou um fogo]
[ou porque não gente]
E dirão todos, nos seus contos, fosse ele o que fosse.
Nem durou o tempo de um passo.
Nem se sabe se tremeu ou só se deu em escuro e laranja a luz do mundo.
[Roxo. Que lampejou um violeta intenso.]
Duvidavam-se os que assim narravam. E seguiam no conto.
Nem se sabe se vaguearam anjos ou demónios.
Se voaram pelos ares, cruzando telhados.
Não se sabe se eram faúlhas e, se o eram, nem se sabe de onde.
E perguntavam-se as gentes, umas a outras, se assim era. Como fora.
Ninguém afirmava, senão que eram vermelhas e cruzavam um céu que ficou de um branco brilhando depois de se ter feito em negro.
Tudo num repente.
Tudo no instante do demorar de um pequeno passo. O tempo de ir atrás ou adiante ou para qualquer outro lado. Um único e curto desandado.
Um tempo diminuto.
Nem de pensar se deu aquele instante. Nem de reter o acontecendo.
Há quem afirme que ouviu cânticos. Quem diga que eram vozes de anjos.
Não sabem explicar. Nem como identificam. Mas ouviram. E eram vozes de anjos. Afirmam.
[Sabem pelo instinto que é o de ser anjo no humano. Digo.]
O que ninguém afirma é ter partido.
Nenhum sinal de ir. De ser levado.
O que ninguém mostra é um qualquer sinal de fogo. Um sinal vincado.
Ninguém ferido em pleno corpo, seja um cotovelo ou um quarto.
Ou ferido no rosto.
Só dela é que o ouvem dito. Ela encontrada estendida na varanda, dois dias esquecidos dos acontecidos.
Um vinco de fogo no rosto assim como se fossem pérolas. Uma, duas, três, marcadas em fiada de colar ou terço. No lado esquerdo do seu rosto pintalgado de sardas.
Uma dezena de um terço de rezar dizendo: Ave Maria Cheia de Graça.
Ela só. Maria Ema , ardida pela face em chagas que seriam cicatriz rosada.
Mais nenhum outro que ela.
Nua na varanda.
E se espantaram os que a viram mais os que escutaram contados que correram num de boca em boca usado neste como em outros casos. Ditos. Contos.
Que tinha uma túnica de linho branco ao lado. Imaculada. Limpa. E ela sangrando.
Que tinha a cara marcada no que daria em cicatriz. Mais tarde.
Contavam quase todos.
Que ardia em febre, sozinha num esconso recanto entre uma salinha e um quarto. Ao relento.
Disseram tanto, antes que ela se dissesse.
E quando ela disse, não a acreditaram.
Calou-se Maria Ema. Desistiu-se.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Página trinta e oito - quarto

Tanto tempo desde que deixou o livro aberto, ao que parece na página trinta e oito, e saiu, quase correndo, a ver o que seria a causa de acabar assim o dia num repente.
E nem foi um segundo, que nem a volta inteira se deu o ponteirinho do relógio que sempre traz no pulso. Todo em ouro e com ponteiros luzentes pelo escuro. Prenda de casamento do Francisco.
[O tio Francisco.
Digo. Emendo.]
Um branco azulado de luz, um tom de tal e qual o que cobria, em aro, a cabeça da Nossa Senhora na capela onde rezava, aos fins de cada tarde, a sua avó Cacilda. Ela, menina, sentada no banco, baloiçando as pernas de dois anos e mais um pouco, nuns Verões mais do que em outros, como é o certo nisso de se ir crescendo. A avó ajoelhada em frente da senhora, muito grande e muito empertigada, num manto pintalgado de estrelas. A senhora que a avó olhava com o queixo erguido e os olhos semicerrados, passando as contas do rosário entre os dedos e mexendo os lábios. A mesma luz que ora brilha no céu que ela olha na varanda entre duas portas com vidros.
Não seria o seu, um olhar de espanto quando aconteceu uma bola de fogo
[ou seria um anjo]
[ou seria demónio]
Pisado o musgo. Iluminado. Mais certo que era musgo e era verde.
Ou seria o seu, um olhar esperando.
E o céu de negro se abria em branco e em luz de fogo.
[ou seria gente]
[ou seria demónio]
[ou seria anjo]
Não o sabe.
Não está certa, ela, sozinha na varanda.
[não de que seja anjo ou fogo,
ou se era o seu um sentir de espanto
ou se lhe era um olhar esperando]
Certa está de que vai voando num abraço quente.
E nem sabe se foi um fogo que a levou a longe.
Certa, de que vai.
[Não de se seria gente ou seria anjo, ou seria demónio.]
Que se partiu ela de ali, ela o saberá, caída na varanda. No chão de limos. Despojada da túnica branca bordada de flores em cada manga.
O chão gelado. Ela o sentirá.
-Estiveste dois dias ali estendida.
Hão de afirmar.
-Ardida de uma febre.
Ouvirá contados.
- Caída na varanda. Ferida de estilhaços.
Dirão os que a viram. E outros. Os que só ouviram recontados.
Há-de sorrir-lhes. Ou dizer zangada à Isabel, sua prima.
-Tu não me desmintas, Maria.
E como ela sabe que a ofende daquele modo de tratamento. Um chamar de criada, na época em que se davam estes aconteceres.
Maria Ema gritará, de olhos muito abertos.
-Eu fui. Não fiquei dois dias estendida na varanda.
Calará desistida que não a acreditam.
A face nem se desfeará na cicatriz.
Um desenho na pele dela, sem mácula, que não o é tal o polvilhado rosado das sardas.
Uma cicatriz como se fora a dezena de um terço.
Inteiras, dez contas pequeninas desde o canto do olho esquerdo até ao queixo. Em arco.
Pode parecer, a quem olhe e não seja devoto, que lhe deflagrou uma bomba em pedaços. Talvez pedrinhas que lhe atirassem.
Dela dirão que lhe rebentou o céu num final de tarde.
Assomou, e o estrondo apanhou-a em cheio sobre o rosto.
É o que explicam.
Não sabem.
Sabe-o ela que não foi no instante após ter deixado aberto, na página que pensa seja trinta e oito, o Ulisses de Joyce. O livro que lia, sentada na salinha virada a uma varanda. Aquela varandinha escondida, aninhada no que era, da casa, uma pequena dobra. Foi depois. Foi num tempo outro que se fizeram nela aqueles redondos.
Ela explicaria cada cicatriz que lhe corta a face, cada conta que lhe enfeita o rosto pelo meio das sardas, num pedaço de rosário de Nossa Senhora. Dez contas de um terço.
Explicava, se acreditassem. Diria quando e como lhe ficaram as marcas em jeito de contas de um terço.
Maria Ema não contará.
Um segredo, outro, que ela guarda.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Página trinta e oito - terceiro

Olha aquele céu estranho. Escuro. O céu enegrecido roubou-lhe a luz com que ainda lia. Num repente. Um quase nada mais que um instante.
Um escuro que a fizera deslizar de dentro. Sair para a varanda. Deixar aberto o livro numa página, descaído na cadeira, sabe lá ela se fechado e nem sabia qual a página. Trinta e oito? Indaga-se olhando da varanda.
Está tão sozinha. Sente frio. Não sabe se é de medo.
Ninguém assoma. Ninguém para ver o que lhe parece um vapor deslizando, denso, num negro de céu, em todo o derredor que ela olha. Um vapor laranja.
Ninguém da casa que fica um pouco para lá do muro do jardim, ainda debaixo da copa da araucária.
Inebria-se. Não percebe. Um céu dantesco que ela olha. Não é receio que sente. É mais uma incerteza, quase tomando a forma de desejo.
Acaricia de cada mão contrária um cotovelo, assim a modos de se fazer um enlaço e dizer: arrefeceu. Desagasalha-a a túnica de linho com bordados nas mangas. Escorregou-lhe, decerto, no chão da sala, o casaquinho de algodão que tinha sobre as costas. Caíra-lhe na pressa de vir cá fora, de entender o que enegrecera a luz de fim de dia. Lhe toldara as letras com que lia.
Caminha um passo, em arrecuas. Um passo lento, assim parecendo que nem achava se devia sair de ali ou se ficar.
Ensurdece do estrondo.
O grito.
O embate.
O ar que se faz quente.
Encandeia-se da luz. O céu embranqueceu e fez mais verde o que era limo de chão não batido de sol. O canto da varanda. Uma prega na casa.
Quieta ela.
Hirta como no jogo, ela pequena, em casa dos avós.
Vamos jogar à estátua. Assim dizia o primo.
Nem nos rimos, nem nos mexemos. Ordenava-lhe ele.
Nem podes mexer as pestanas, senão perdes. Gritava-lhe o Silvestre. Morreu cedo. Num Verão, não veio. Tinha, como ela, treze anos feitos por Janeiro. Angina de peito. Foi a mãe quem disse.
Ela sempre perdia. Mexia-se demais, no jogo. Ele muito quieto. Muito morto.
Seria vencedora aquela noite, as mãos abraçando as mangas bordadas da veste, os olhos tão abertos, nem pestanejavam, quedos naquele não perceberem. Mais do que receio. E não era medo. Parecia um querer muito forte que ela não entende. E nem tem o tempo. Estátua, ela, no recanto onde cresceu o musgo. Uma dobra da casa.
Desiluminara-se, ainda há um nada, o ar da sala.
E nem era o momento de o sol se esconder e tanto se alaranjara o firmamento.
Não sabe como sentir. Nem se ficar ou se fugir. Nem sabe ela de que fugiria.
Um momento grande o que lhe acontece.