quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Página trinta e oito - quarto

Tanto tempo desde que deixou o livro aberto, ao que parece na página trinta e oito, e saiu, quase correndo, a ver o que seria a causa de acabar assim o dia num repente.
E nem foi um segundo, que nem a volta inteira se deu o ponteirinho do relógio que sempre traz no pulso. Todo em ouro e com ponteiros luzentes pelo escuro. Prenda de casamento do Francisco.
[O tio Francisco.
Digo. Emendo.]
Um branco azulado de luz, um tom de tal e qual o que cobria, em aro, a cabeça da Nossa Senhora na capela onde rezava, aos fins de cada tarde, a sua avó Cacilda. Ela, menina, sentada no banco, baloiçando as pernas de dois anos e mais um pouco, nuns Verões mais do que em outros, como é o certo nisso de se ir crescendo. A avó ajoelhada em frente da senhora, muito grande e muito empertigada, num manto pintalgado de estrelas. A senhora que a avó olhava com o queixo erguido e os olhos semicerrados, passando as contas do rosário entre os dedos e mexendo os lábios. A mesma luz que ora brilha no céu que ela olha na varanda entre duas portas com vidros.
Não seria o seu, um olhar de espanto quando aconteceu uma bola de fogo
[ou seria um anjo]
[ou seria demónio]
Pisado o musgo. Iluminado. Mais certo que era musgo e era verde.
Ou seria o seu, um olhar esperando.
E o céu de negro se abria em branco e em luz de fogo.
[ou seria gente]
[ou seria demónio]
[ou seria anjo]
Não o sabe.
Não está certa, ela, sozinha na varanda.
[não de que seja anjo ou fogo,
ou se era o seu um sentir de espanto
ou se lhe era um olhar esperando]
Certa está de que vai voando num abraço quente.
E nem sabe se foi um fogo que a levou a longe.
Certa, de que vai.
[Não de se seria gente ou seria anjo, ou seria demónio.]
Que se partiu ela de ali, ela o saberá, caída na varanda. No chão de limos. Despojada da túnica branca bordada de flores em cada manga.
O chão gelado. Ela o sentirá.
-Estiveste dois dias ali estendida.
Hão de afirmar.
-Ardida de uma febre.
Ouvirá contados.
- Caída na varanda. Ferida de estilhaços.
Dirão os que a viram. E outros. Os que só ouviram recontados.
Há-de sorrir-lhes. Ou dizer zangada à Isabel, sua prima.
-Tu não me desmintas, Maria.
E como ela sabe que a ofende daquele modo de tratamento. Um chamar de criada, na época em que se davam estes aconteceres.
Maria Ema gritará, de olhos muito abertos.
-Eu fui. Não fiquei dois dias estendida na varanda.
Calará desistida que não a acreditam.
A face nem se desfeará na cicatriz.
Um desenho na pele dela, sem mácula, que não o é tal o polvilhado rosado das sardas.
Uma cicatriz como se fora a dezena de um terço.
Inteiras, dez contas pequeninas desde o canto do olho esquerdo até ao queixo. Em arco.
Pode parecer, a quem olhe e não seja devoto, que lhe deflagrou uma bomba em pedaços. Talvez pedrinhas que lhe atirassem.
Dela dirão que lhe rebentou o céu num final de tarde.
Assomou, e o estrondo apanhou-a em cheio sobre o rosto.
É o que explicam.
Não sabem.
Sabe-o ela que não foi no instante após ter deixado aberto, na página que pensa seja trinta e oito, o Ulisses de Joyce. O livro que lia, sentada na salinha virada a uma varanda. Aquela varandinha escondida, aninhada no que era, da casa, uma pequena dobra. Foi depois. Foi num tempo outro que se fizeram nela aqueles redondos.
Ela explicaria cada cicatriz que lhe corta a face, cada conta que lhe enfeita o rosto pelo meio das sardas, num pedaço de rosário de Nossa Senhora. Dez contas de um terço.
Explicava, se acreditassem. Diria quando e como lhe ficaram as marcas em jeito de contas de um terço.
Maria Ema não contará.
Um segredo, outro, que ela guarda.

4 comentários:

J. disse...

Que outros segredos guarda ela?
Gostei muito.

Beijos do sobrinho

Gi disse...

Amanhã venho cá espreitar. Com calma, como tu mereces. Talvez consiga ter um tempo (de qualidade) disponível para responder ao teu desafio e a mais uns quantos que estão a criar pó .

Um beijo princesa

wind disse...

Escritora, cada vez mais empolgante:)
beijos

CNS disse...

Tenho vindo cá espreitar aos bocadinhos... Que é assim que saboreia o que de belo nos fica no céu dos olhos.

bjs