Maria Ema nua. A cabeça tombada sobre os limos verdes.
O corpo caído de bruços, os pés ainda mal saídos da salinha.
Os cabelos ruivos parecendo as chamas da febre em que lhe arde o corpo.
Poisado ao lado, o branco, muito branco, da túnica. Despida dela, tal como o colar de pérolas que o tinha no decote, aquela tarde. Rebentado em bolinhas que rolam aos passos dos que entram na varanda. Descobrem-na.
- nua e ferida
- queimada a cara
- ardendo em febre
Menina, Maria Ema, Vizinha, Senhora Dona, Minha querida.
É conforme quem fala. Vozes que a olham.
Vozes que dizem como se escrevessem letras no ar da tarde, como se apontassem num caderno de notas. Memorando.
As vozes que vieram correndo, zanzando pela casa até á varanda.
Mãezinha! a voz da filha mais nova.
Vozes baixas. Espantadas.
Vozes jovens demais para saberem.
Diria ela se pudesse. Ardendo em febre numa tarde de um Abril ainda em meio.
Ferida no rosto. Dois dias estendida na varanda.
É o que dizem, recontam.
E ela insistirá que foi o quente que a levou para um aonde.
[ou um furacão]
[ou um fogo]
[ou porque não gente]
E dirão todos, nos seus contos, fosse ele o que fosse.
Nem durou o tempo de um passo.
Nem se sabe se tremeu ou só se deu em escuro e laranja a luz do mundo.
[Roxo. Que lampejou um violeta intenso.]
Duvidavam-se os que assim narravam. E seguiam no conto.
Nem se sabe se vaguearam anjos ou demónios.
Se voaram pelos ares, cruzando telhados.
Não se sabe se eram faúlhas e, se o eram, nem se sabe de onde.
E perguntavam-se as gentes, umas a outras, se assim era. Como fora.
Ninguém afirmava, senão que eram vermelhas e cruzavam um céu que ficou de um branco brilhando depois de se ter feito em negro.
Tudo num repente.
Tudo no instante do demorar de um pequeno passo. O tempo de ir atrás ou adiante ou para qualquer outro lado. Um único e curto desandado.
Um tempo diminuto.
Nem de pensar se deu aquele instante. Nem de reter o acontecendo.
Há quem afirme que ouviu cânticos. Quem diga que eram vozes de anjos.
Não sabem explicar. Nem como identificam. Mas ouviram. E eram vozes de anjos. Afirmam.
[Sabem pelo instinto que é o de ser anjo no humano. Digo.]
O que ninguém afirma é ter partido.
Nenhum sinal de ir. De ser levado.
O que ninguém mostra é um qualquer sinal de fogo. Um sinal vincado.
Ninguém ferido em pleno corpo, seja um cotovelo ou um quarto.
Ou ferido no rosto.
Só dela é que o ouvem dito. Ela encontrada estendida na varanda, dois dias esquecidos dos acontecidos.
Um vinco de fogo no rosto assim como se fossem pérolas. Uma, duas, três, marcadas em fiada de colar ou terço. No lado esquerdo do seu rosto pintalgado de sardas.
Uma dezena de um terço de rezar dizendo: Ave Maria Cheia de Graça.
Ela só. Maria Ema , ardida pela face em chagas que seriam cicatriz rosada.
Mais nenhum outro que ela.
Nua na varanda.
E se espantaram os que a viram mais os que escutaram contados que correram num de boca em boca usado neste como em outros casos. Ditos. Contos.
Que tinha uma túnica de linho branco ao lado. Imaculada. Limpa. E ela sangrando.
Que tinha a cara marcada no que daria em cicatriz. Mais tarde.
Contavam quase todos.
Que ardia em febre, sozinha num esconso recanto entre uma salinha e um quarto. Ao relento.
Disseram tanto, antes que ela se dissesse.
E quando ela disse, não a acreditaram.
Calou-se Maria Ema. Desistiu-se.
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3 comentários:
Estive a ler a história toda de seguida, assim é que me sabe (soube) bem .
A verdade por vezes é tão inverossímel ... acredita-se no
que se quer acreditar, não necessariamente na verdade ... já criaram uma outra.
Gostei mas perco-me a andar de um lado para o outro :)
beijos
Escrotora está magnífica esta parte do conto.
Sempre as tuas belas descrições:)
Beijos
belísimo de tão humano e sentido transmitido de vidas e vidas.
Fraterno abraço.
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